A finalidade das coisas é, precisamente, esse movimento que trazem em si, essa tendência, nascida da contradição entre a sua natureza finita e o que as transporta para lá delas próprias, para o infinito, […] identificando-se com o real na sua totalidade, ou se se quiser, com Deus.[1]

Este texto tem um tempo antes e um tempo depois e uma estória que interessa contar. A descoberta da obra de Joana de Carvalho e Silva (n.1988) dá-se num encontro ocasional com dois dos seus pastéis de óleo sobre papel (Dicionário Prático do Ofício e A Confissão da Sombra, ambos de 2012) que estão em depósito na galeria shairart dst, em Braga. Do encontro à eterna memória da emoção estética, ter-se-ão passado frações de segundo suficientes para a inquietação se tornar insegurança e dúvida, não pela qualidade do trabalho da jovem artista plástica bracarense, mas pela fonte inesgotável de paralelismos e identificações que deixa em cada um de nós. Os processos contemporâneos de curadoria, se considerarmos inclusive algumas teorias mais recentes sobre o papel do curador como substituto do crítico de arte, quase em extinção, (independentemente do enquadramento institucional do curador), não são alheios ao gosto e à intuição. À primeira vista, à segunda, à terceira e em todas as que se seguiram, uma exposição individual de Joana de Carvalho e Silva enquadrava-se na estratégia curatorial da shairart, quer pelo sentido de missão de dedicarmos parte da nossa programação ao apoio, não só a jovens artistas, como também a artistas naturais da região, quer pela dimensão conceptual e poética que a sua obra integra e que se cruza com o processo de comprometimento do projeto com o pensamento contemporâneo, em diálogos multidisciplinares e abertos.

Joana de Carvalho e Silva sempre pintou. Contudo, resistiu inicialmente à vocação e optou por se licenciar em Psicologia pela Universidade do Minho (2006-2009). O mestrado em Pintura levou-a à Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto (2010-2012), onde defendeu tese intitulada “O Teatro de que somos lugar: Pintura e Simulacro”. Atualmente encontra-se a frequentar o Doutoramento em Arte e Design, também na FBAUP. A amplitude da sua formação académica, dos seus interesses e a sensibilidade que coloca em cada palavra e em cada gesto, associam-se a uma elevada maturidade intelectual e a uma exercício de reflexão sobre a sua produção plástica que dão coerência ao que nos propõe. Expõe, regularmente, desde 2010 e uma das suas criações (De Porcelana, 2011) integra a coleção do Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão, da Fundação Calouste Gulbenkian.

As suas imagens deambulam, em termos de referencial histórico, entre as de Dominguez Alvarez (1906-1942) e as de Edward Hopper (1882-1967). São próximas do cinema de Jacques Tati (1907-1982) e, sobretudo, reportam-nos para o universo do teatro de Augusto Boal (1931-2009), de conflito humano interno e externo: “Mas nem só de aplausos vive o artista. Vive também de tiroteios. Suas relações com o público podem ser de comunhão, duelo ou guerra.”, escreveu o dramaturgo brasileiro, inventor da estética do oprimido, em Aplausos e Tiroteios. Depois, além das viagens que a obra de Joana de Carvalho e Siva proporciona (e que a tornam rica, informada e intemporal) há o pastel, o domínio da técnica e a subtileza, às vezes raiva, que a artista empenha na relação de tensão entre composição, cor e mensagem que a sua obra consubstancia. O que nos aproxima e inquieta na pintura de Joana de Carvalho e Silva é o jogo que retira significantes ao quotidiano, com recurso à ironia e à melancolia, talvez mesmo o estado de depressão geral disfarçada em que todos nos encontramos e que, na sua pintura, Joana de Carvalho e Silva explora, sugestiona, convidando-nos a um processo de imersão sistémica.

E este é o tempo do antes, o tempo antes da imersão sistémica no seu mundo e de contacto com as suas múltiplas referências, que vão da pintura de Rembrandt (1606-1669) ao pensamento filosófico de Jean Baudrillard (1929-2007), nomeadamente pela dissecação do conceito de simulacro, passando pelo cinema e, muito em particular, pelo universo teatral e literário das obras de Manoel de Oliveira (1908-2015). No tempo depois, curadora e artista partilharam as suas emoções estéticas e encontraram-se em Vale Abraão (1993), filme que do realizador portuense com Leonor Silveira, Luís Miguel Cintra, Ruy de Carvalho, entre tantos outros, que parte de uma adaptação da obra homónima de Agustina Bessa-Luís (n.1922), por sua vez um exercício literário inspirado em Madame Bovary (1857) de Gustave Flaubert (1821-1880). Depois de umas horas de conversa com Joana de Carvalho e Silva, não sei quantas vezes revi o filme e os livros (o de Agustina e o de Flaubert) e vi em Ema, a personagem de Oliveira e Agustina, e mesma fonte inesgotável de paralelismos e identificações, personificadas em duas mulheres: uma virada para o fascínio ilusório do mundo, a outra para a transcendência, para a poesia de uma ética romântica, onde o amor deve ser como um deus muito respeitável, ou seja, a síntese do simulacro pictórico de Joana de Carvalho e Silva.

No Vale Abraham, lugar do Homem chamado inutilmente à consciência do seu orgulho de vergonha, de cólera, passavam-se e passam-se coisas que pertencem ao mundo dos sonhos, o mundo mais hipócrita que há.[2]

O título Vale Abraão coloca a ênfase no contexto. O vale do Douro, com os seus rituais vinhateiros e o mundo dos sonhos, desejos imaginários, é o centro ficcional do filme. Vemo-lo apresentado e sacralizado pela voz do narrador e, em termos imagéticos, enquadrado desde o início por um travelling a partir do interior do comboio, que o penetra, deixando transparecer o fascínio documentarista sempre presente na obra de Manoel de Oliveira. A ausência do espaço citadino atribui ao vale do Douro uma importância primordial, revelando um universo de camponeses, burgueses, vindimadores, patrões e empregados domésticos.

Contudo, na primeira informação que o narrador concede sobre o Vale, somos logo introduzidos num universo algo misterioso e propiciador de problemas, um “mundo dos sonhos, o mundo mais hipócrita que há”. As considerações do narrador sobre os primórdios do vale e do seu patriarca Abraão – que usou ignominiosamente a sua mulher Sara como objeto de sedução para resolução dos seus problemas e teve percalços extraconjugais[3] – introduzem “lugares de sombra” nos espaços deste vale, cheios de memórias de um passado conturbado, em que os descendentes arrastam agora uma vida passiva e recatada, deixando transparecer a visão decadente de uma burguesia arruinada. Contudo:

Ema não iludia ninguém. Não tinha tática. Tinha só o sentido do espetáculo. Vestia-se e agia, como se tivesse de conquistar Holofernes no seu arraial, mas na realidade, não passava de um erotismo tabelado pela utopia do poder e da importância social.[4]

A antítese patente nas composições de Joana de Carvalho e Silva, com recurso à manipulação simbólica da escala, fazem-nos distinguir o enquadramento arquitetónico, de perspetiva ilusória e labiríntica, os aglomerados humanos indistintos que o povoam em versão micro e as figuras, geralmente femininas, que ocupam os lugares do edificado à escala publicitária, mas mais próxima do real. Num exercício cromático perfeitamente definido, não obstante a fisicalidade e densidade com que usa a matéria, a artista cria superfícies planas, em que ensaia jogos de claro-escuro, que combina com uma sensibilidade para o desenho e para a representação delicada e expressiva da figura humana. Torna-se inevitável a referência aos ambientes de Manoel de Oliveira, bem como aos seus jogos de câmara lenta e atenção ao detalhe. É o tudo e o nada, na ilusão dos contrários (o vazio e o cheio, a luz e a sombra, a solidão e a companhia, o rosto em detalhe e os corpos indiferenciados, o quente e o frio, a calma e o caos, o palco e a plateia), em imagens de leituras múltiplas e infinitas.

Cheguei ao fim desta minha apologia do romance como grande rede. Poder-se-á objetar que quanto maior for a tendência da obra para a multiplicação dos possíveis mais se afasta do unicum que é o self de quem escreve, a sinceridade interior, a descoberta da sua própria verdade. Pelo contrário, respondo eu, quem somos nós, quem é cada um de nós senão uma combinação de experiências, de informações, de leituras, de imaginações? Cada vida é uma enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objetos, um catálogo de estilos, onde tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras possíveis.[5]

Sobre a exposição, que a galeria shairart dst acolhe de 3 de março a 28 de abril, Escrutínio do (In)visível – Pintura e Simulacro, a autora diz-nos tratar-se de um “projeto pictórico centrado na temática do simulacro e configurado na relação entre espaço cinematográfico e espaço da pintura”. Apresentam-se perto de quatro dezenas de obras produzidas entre 2010 e 2017 e, sobretudo, revela-se a artista que é, sob todas as formas, a sua obra.

Há entre nós uma estima mútua, que se situa no imponderável. Nem ela, se falasse, saberia explicar. Foi dedicada e íntegra, em absoluto. Entre mim e ela criou-se esta ligação, não sei bem dizer, vegetal. Sei que foi uma mulher que dedicou uma vida inteira ao trabalho, por devoção, sem que lho exigissem.[6]

Helena Mendes Pereira

chief curator da shairart

 

[1] GARAUDY, Roger – La pensée de Hegel. Bordas, 1996, páginas 29 a 34. In SANTOS, Maria Helena Varela; LIMA, Teresa Macedo – Textos de Filosofia. Curso Complementar. Volume 1. Porto: Porto Editora, 1977, página 221.

[2] OLIVEIRA, Manoel de – Vale Abraão, com Leonor Silveira, Luís Miguel Cintra, Ruy de Carvalho. Portugal/França/Suíça, 1993, 187mn (versão integral 203mn), DVD, Madragoa filmes.

[3] Segundo o relato bíblico, era costume na época os governantes poderosos confiscarem para si as mulheres atraentes com a consequente morte dos maridos. Sara era uma mulher muito bela e Abraão, nas suas errâncias para espalhar descendência, a fim de se proteger e ser bem aceite nesses locais, fazia passar Sara por sua irmã. Abraão recebia muitos bens e riquezas pelo dote de Sara, mas quando os senhores descobriam que Sara era casada, os homens dos reinos sofriam castigos, sendo um deles a esterilidade de todas as mulheres.

[4] OLIVEIRA, Manoel de – Vale Abraão, com Leonor Silveira, Luís Miguel Cintra, Ruy de Carvalho. Portugal/França/Suíça, 1993, 187mn (versão integral 203mn), DVD, Madragoa filmes.

[5] CALVINO, Ítalo – Seis propostas para o novo milénio. Tradução de José Colaço Barreiros. Lisboa: Editorial Teorema, 1990, página 145.

[6] OLIVEIRA, Manoel de – Vale Abraão, com Leonor Silveira, Luís Miguel Cintra, Ruy de Carvalho. Portugal/França/Suíça, 1993, 187mn (versão integral 203mn), DVD, Madragoa filmes.

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