Há um ano atrás pensámos a fotografia como matéria que sabíamos ser necessária elevar. A inquietude característica das práticas fotográficas coincidia com a audácia que nos invadia ao ter a galeria shairart dst em branco. Uma ação contínua entre procura e encontro de talento devolveu-nos ao nome, então, criado: BE A PHOTOGRAPHER. A shairart engrandece-se na sua primeira Exposição Coletiva Internacional de Fotografia, através do percurso de seis autores: André Castanho Correia, Miguel De, limamil, Dimitri Mellos, Gabriel Tizón e Ricardo Reis.

 “In 1989, 150 years after Fox Talbot’s announcement of ‘photographic drawing’ (the calotype), the Royal Academy, London, mounted his first ever photography exhibition, The Art of Photography. (…) The first major photography show at the Tate (Tate Modern, London), titled Cruel and Tender, was not until 2003.” 1

 O título da referida exposição remete para uma caracterização do corpo de trabalho do fotógrafo documental Walker Evans (1903-1975), atribuída ao fundador do New York City Ballet, Lincoln Kirsten (1907-1996): “tender cruelty”. O percurso histórico de conquista do lugar pela Fotografia em espaço expositivo eliminou vários estereótipos: de evidenciar o do registo fotográfico como o culminar de uma espera pelo instante perfeito, exaltando a espontaneidade e eliminando a possibilidade da uma (pré) encenação (quer conceptual, quer física). Este sentimento de pertença foi acompanhado da mudança de paradigma no qual o ato de fotografar se desloca do campo da arte, em minúsculas, para o âmbito da Arte, em maiúsculas, previsto em 1988: “It must be admitted by the most determined opponent of photography as fine art that the same object represented by different photographers will produce different pictorial results and this invariably not only because the one man uses different lenses and chemicals than the other but because there is something different in each man’s mind which somehow gets communicated to his fingers’ ends and thence to his pictures”. 2

Distintas motivações de criação detêm um espaço próprio no mundo da Arte, da graciosidade da fotografia pictórica à capacidade de reportar da documental. A leitura do espaço da galeria e dos espaços representados, através da imagem, é uma oportunidade de encontro com o nosso próprio referencial: levados a espaços desabitados ou em abandono, transportados para lugares de e em transição, remetidos para práticas de quotidianos que não os nossos, mas que nos remetem para a experiência individual. Todas as identidades registadas em imagem poderiam ser de outros, poderiam ser as nossas, se nascidos em outros locais, identificados em distintas etnias ou em novas circunstâncias sociais.

O circuito internacional de bairros sociais desenhado por André Castanho Correia aproxima-os pelo conceito de transformação, na sua maioria em processos de demolição, abandono e requalificação. É ultrapassada a própria fronteira formativa da arquitetura e deparamo-nos com uma estética neutra, de detalhada resolução e de enquadramento cuidado, próprios da fotografia de médio formato, reinstaurando o exercício do estudo, observação e inserção aprofundada nas comunidades registadas. Sem possibilidade de distração, é negada a possibilidade de entretenimento por possíveis contrastes ou saturação dos tons, sendo evidenciados os elementos simbólicos do território, como barreiras, entradas, escadas ou arte urbana. A brutalidade do edificado – quer de imponência, quer de carência – contextualiza o espetador na dualidade tempo-espaço, criando área imaginativa para infinitas narrativas domésticas.

O presente projeto fotográfico é a estreia de Miguel De como fotógrafo em espaço expositivo físico: houve um percurso até se encontrar em “A Body of Land”, série composta por dípticos que unem figura humana – real ou simulada – a paisagem – natural ou construída. As formas de uma são as de outra: naturais, belas e clássicas. Cada conjunto revisita momentos que, em uníssono, se transformam num único poema, a uma voz. Como se de uma escrita minimalista e cuidada se tratasse, é traduzida a beleza do corpo masculino, aqui enobrecida, e da natureza em uma única forma comum, gerando um gesto em luz partilhada, embora fotografada em ocasiões diferentes. O elogio das formas físicas é ampliado na exaltação da intimidade, onde não é dissimulada a ausência de pudor do fotografado perante o fotógrafo.

Transversal à galeria, em termos físicos, e à própria Fotografia, no seu campo de possibilidades, os objetos da autoria de limamil atravessam as diferentes séries fotográficas expostas, enquadrando-se e/ou questionando, desafiando o visitante a participar no processo fotográfico. Ao conceito de maquinaria e operacionalidade é contraposto o elogio da beleza originário na simplicidade das linhas. No campo infinito da reprodução fotográfica destaque para a introdução da cianotipia, técnica alternativa ao tradicional processo de obtenção de cópias baseado em sais de prata. O ciano é o elemento que importa a cor para a presente seleção, em uma das únicas peças cuja designação não é personalizada pelo seu nome artístico. Desloca o tradicional conceito da fotografia impressa e colocada em parede branca, guiando-nos pelas óticas da funcionalidade e representatividade de cada obra de arte.

Dimitri Mellos impregna a sua visão dos conhecimentos das áreas de estudo: psicologia e filosofia. Criam-se narrativas que possam dar resposta à possível ligação das personagens: se por mera casualidade, se por uma vida a dois; se pela presença da câmara ou pela coincidência de uma manifestação. A condensação da cor transporta-nos, mesmo após deixarmos de olhar a imagem, para um universo cinematográfico que ultrapassa a fronteira do fotojornalismo como referência original. O consolidado percurso do autor é alimentado por uma insaciável curiosidade na figura do outro: maioritariamente em trânsito, ótica que o fascina, mas com abertura para a fotografia de paisagem, na qual é constante o elemento humano. De um mar de possível população indistinta, é elevado um rosto, dignificando as respetivas particularidades.

Gabriel Tizón retrata o entretanto. Em mar e terra onde poderiam pousar os nossos pés e família (ou pairar a ausência dela), não há fronteiras territoriais que contenham a atualidade registada, na qual impera a bússola da sobrevivência. A imagem não gera respostas ou soluções – levanta questões, dá voz às dúvidas e destapa o encoberto. Esta insurgência contra os momentos de transição forçada, de viagem involuntária, que, por um momento nos fazem suster a respiração juntamente com os fotografados, dão corpo e cara à atualidade que nos chega em avalanche de informação, maioritariamente indiscriminada.

Ricardo Reis, em percurso de inspiração em referenciais cinematográficos e jornalísticos, sustenta a possibilidade de representação simultânea de movimento e pausa: a fotografia a preto e branco como possibilidade de ordenação em plena urbe caótica. Parte de espaços inseridos na rotina da maioria e reveste-os de um novo significado, como se a fotografia nos compelisse a ver novamente. Sem abandonarmos lugares comuns, ganhamos uma nova perceção, como se de outros se tratassem: centros de outras cidades, baixas de capitais longínquas, periferias que não as que nos circundam. As múltiplas exposições afastam o nosso olhar de uma primeira leitura óbvia e situam-nos na pluralidade de possibilidades inseridas em uma única obra de arte. A capacidade de revisitar topografias já conhecidas aproximar-nos-á da habilidade de olhar verdadeiramente os espaços que habitamos.

A Fotografia, em particular, e a Arte, em geral, interligam criadores e públicos. Celebramo-las na sua reinvenção contínua e pensamos a shairart como inovação em permanência, que devolve à comunidade o que de melhor se cria na contemporaneidade. O espaço em branco referido no início da presente reflexão – sentido na reestruturação da shairart, pleno de potencial – foi preenchido, também, pela nova vaga de programação da cidade onde nos sediamos. Em sistema de rede, associamo-nos aos diversos projetos da Braga Media Arts, cujo desafio lançado à cidade faz emergir potenciais que intersectam linguagens analógicas e digitais. Esta dualidade caracteriza a nossa ação: recuperamos os catálogos impressos, em fascículos de edição limitada; criamos conteúdo diário em plataformas online, reunindo o poder da imagem com a força da palavra; ultimamos com a presença física e virtual dos shairart’ists: dentro ou fora da galeria, mas com a sua essência captada em vídeo, nas nossas redes. Um ano depois, ainda revestidas a coragem, somos um trio (com início no grupo dst, pautadas pela sua história e amparadas por tantos) que encontra inspiração nos artistas que emergem e se consolidam, ciclicamente. Resta-nos criar espaço, diariamente, para que cada um dos que a shairart representa – em Fotografia, Pintura, Escultura, Ilustração e Desenho; dentro e fora de Portugal – trace caminho em pista própria.

Catarina Martins

Head of Communication da shairart

co-curadora de BE A PHOTOGRAPHER

 

1 WELLS, Liz – Photography; A Critical Introduction. Glasgow: Routledge, 2004. Terceira Edição. Página 248.

2 HARKER, Margaret – The Linked Ring: The Secession Movement in Photography in Britain, 1892-1910. Londres: Heinemann, 1988. Página 46.

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