Será no mínimo curioso que “Zeus seja divindade com vícios e virtudes humanas”. Obviamente que nós os humanos tenhamos que fazer um esforço, para contar uma história ou lenda, que respeite o nosso entendimento. Como caberia nas nossas cabeças que Zeus, Hera e Europa pudessem relacionar-se entre si como se relacionam os animais irracionais? Estes, para serem explicados e contados, têm de se assemelhar a nós. Na verdade, tudo que o Homem faz, faz à sua imagem. Protágoras, sofista da Grécia Antiga dizia que “O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são e das que não são, enquanto não são”, ou seja, claro que se um copo serve para o homem beber, este não pode ter o tamanho do homem, ou, se contarmos uma história sobre deuses aos humanos, os deuses certamente terão que adquirir as caraterísticas humanas. Relação e escala são coisas sólidas que sustentam, em parte, o entendimento humano como ele é.

A representação é uma caraterística humana, quando nascemos imitamos os outros e assim construímos a nossa maneira de falar e de agir. O corpo é a coisa que representa antes de ser o objeto de representação. Para Aristóteles o conceito de mimeses abarca a imitação do verosímil na natureza e este é o fundamento de toda a arte.

“O dualismo simbólico do corpo” em que o corpo é o visível e alma o invisível desmitifica ou mitifica o lugar da nossa experiência estética. Martin Heidegger dizia que “o homem constrói para habitar”, mas quando construímos visualmente, ou seja, sempre que abrimos os olhos, o que será que construímos? O que será que habitamos?

Sendo a alma aquilo que anima o nosso corpo e que uma sem o outro, em princípio, de pouco valerá para agir, são homem e mulher animados de maneiras opostas entre si e opostas ao sexo do seu corpo. Haverá presente no homem uma personalidade interior feminina chamada de “anima” e presente na mulher uma personalidade interior masculina apelidada de “animus”. Talvez tenha o seu peso no momento de criação artística assim como o corpo tem no momento de nascimento de uma criança.

O desenho é uma ferramenta que serve para representar tudo o que existe e o que não existe, porém, apesar de coerente, é demasiado estranho que aquilo que mais tenha motivado a criação artística até aos dias de hoje, tenha sido a representação de nós mesmos. Temos por isso a capacidade de olhar a nós próprios e ao outro.

No antigo Egipto, nos momentos funerários de figuras importantes, principalmente de faraós, eram realizados retratos sobre madeira que eram colocados juntamente com os mumificados, que representavam a eterna juvenilidade do defunto. Estes retratos não eram para ser vistos, eles representavam a juvenilidade pertencente àquele corpo e isso era algo que desaparecia juntamente com o corpo e a alma. Contudo, as técnicas usadas como a têmpera ou a encáustica, e as condições em que estes se encontravam guardados, juntamente com as múmias, fizeram com que se conservassem por milénios e chegassem praticamente intactos aos dias de hoje.

O confronto com a realidade é intensificado quando a realidade somos nós mesmos, a questão do autorretrato traz um caminho perigoso e angustiante. Um mergulho nas profundezas do nosso olhar pode custar-nos a vida, a eternidade de Rembrandt, o autoconhecimento tão apelativo e complicado de se atingir. A tarefa complexa de nos captarmos abre-nos para aquilo que somos e aquilo que nunca poderemos ser. Atingir o invisível de nós só a partir do visível num lugar onde tudo é representável.

A criação artística caminha na direção de uma intencionalidade, o artista pode partir do nada ou de uma coisa muito pequena. Durante o processo os motivos e intenções devem ser intensificados, porém deixados de lado, o objeto tem de ter a capacidade de remeter sem apoios de nada para ser arte. “A arte mostra-se transgressora e reflexiva, com a adoração pelo objeto, pelo excesso, pela dor, pela violência.”

Antigamente, a pintura ocupava a posição da pornografia da luta, muitas eram as pessoas que adquiriam objetos como estes não por prazer estético, mas por capricho. Para muitos a arte era um conjunto de ideias que tinham que ser respeitados. Esses ideais foram importantíssimos na construção da história da arte como por exemplo o cânone de Policleto que vem indicar as proporções adequadas da representação de um corpo, certamente que na altura este cânone contribuiu para o aumento da experiência estética. Mais tarde o Modulor de Le Courbusier vem conferir um caráter mais prático atribuindo pés direitos às construções de acordo com o tamanho da grande maioria da população. A forma como nos representamos tem sido pensada e representada pelas artes plásticas, arquitetura, música, dança, literatura, teatro, cinema, e, apesar de menos ou mais mimética, apesar de conter mais abstração ou mais hiper-realismo, esta é a maneira como temos entendido aquilo que somos e onde nos encontramos.

A partir do gesto nós nascemos e com gestos fazemos o nosso dia-a-dia, o gesto é para nós, mas serve também para indicar ao outro, com um gesto se mata, com um gesto se ama. Para haver comunicação é necessário gesticular, para gesticular é preciso estar vivo, ou ter-se estado. O simbolismo de um gesto já tem que ver com o campo do entendimento. Dizem que uma imagem vale mais que mil palavras e é verdade no que toca ao significado mas na verdade a imagem de um gesto é apenas um gesto e uma palavra é um conjunto de gestos que não se interrompem desde a primeira até à última letra, seja esta falada ou escrita.

As duas dimensões do homem culminam na imaginação e entendimento, o natural que se conhece e sobre si age. É no desencadeamento de questões que abordam o corpo e a arte, que em mim se desencadeiam outras questões como: seremos realmente uma forma delimitada como aparentamos? Terá corpo e alma alguma distinção entre si? Seremos realmente capazes de não sentir o eu para sentir outro?

Nós não nos sabemos representar, nós sabemos mimetizar-nos, nós representamo-nos, expandindo-nos e até já fizemos do nosso corpo objeto. Que outras formas de nos pensarmos poderão fazer de nós mais humanos e fazer-nos perceber melhor o que somos e onde estamos?

O sul apenas é verdade se estivermos na terra.

AlbertoRodriguesMarques

Assistente de Curadoria

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